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20 de Agosto de 1994 – Um dia atribulado ou uma Odisseia na Estrada

Texto em Destaque

No dia 20 de Agosto de 1994, parti de Chimoio, capital da Província de Manica, para Quelimane, capital da Província da Zambézia. Na altura, eu era Ministro da Construção e Águas, cargo que ocupava desde Março de 1987.

Isto seguia-se à minha orientação do Conselho Coordenador do Ministério da Construção e Águas, que ocorreu ao longo de 5 dias.

Era sábado, num dia de sol, típico da estação, e para a viagem de 586 km, eu esperava chegar ao meu destino antes do pôr do sol. A minha comitiva integrava os delegados da Província da Zambézia que tinham participado no Conselho Coordenador e estavam a viajar de regresso.

O Conselho Coordenador é uma reunião bienal de um ministério em que se faz o balanço da atividade nos dois anos anteriores.

O meu objectivo, ao viajar para Quelimane, era juntar-me à delegação do Presidente da República na sua visita à província da Zambézia, que se iniciava no dia seguinte. De Chimoio tomámos a N6 em direção a leste para Dondo, onde virámos para norte pela N282 até Inhamitanga, e juntando-nos à N1 pouco depois, seguimos em direção a Caia, uma pequena aldeia na margem sul do rio Zambeze.

Depois de atravessar o rio Zambeze, iríamos continuar na N1 até Nicoadala, onde íamos apanhar a N10 em direção a Quelimane.

Enquanto a N6, a N1 e a N10 eram estradas pavimentadas, a N282 era uma estrada de terra batida, geralmente em bom estado, excetuando alguns troços. A N6 liga a cidade costeira da Beira ao Zimbabwe, através da fronteira de Machipanda. Ao longo do percurso, encontra-se Chimoio, a capital da província de Manica.

A viagem estava a correr bem até chegarmos a um bloqueio imprevisto em Inhamitanga, 57 km antes de chegarmos ao Rio Zambeze.

Antigos combatentes da Renamo, o movimento rebelde que estava a lutar contra o Governo, bloquearam a estrada alegando promessas não cumpridas pelo seu movimento.

Para contextualizar, o Acordo Geral de Paz tinha sido assinado quase dois anos antes, a 4 de Outubro de 1992, e a esses combatentes tinham sido prometidos utensílios agrícolas e sementes para regressarem às suas zonas de origem.

Relato de Viagem

Apesar do título do excerto noticioso, não se tratou de um rapto, mas sim de um bloqueio do trânsito numa estrada. Ninguém, incluindo eu próprio, foi feito prisioneiro, mas estávamos retidos numa estrada, podendo permanecer nos nossos veículos, mas impedidos de prosseguir viagem. Os homens que estavam a bloquear a estrada não o faziam de forma coordenada com os seus chefes ou hierarquias superiores.

E não havia qualquer papel da missão de paz da ONU, uma vez que o bloqueio da estrada era uma iniciativa local não coordenada com a sede do movimento com o qual a missão da ONU interagia.

Estes indivíduos encarnavam a realidade de homens que lutaram durante anos por aquilo que seriam os seus ideais e que, na sequência do Acordo Geral de Paz, tinham sido desmobilizados e apenas aguardavam pelos utensílios e sementes agrícolas assim como pelo dinheiro que lhes tinha sido prometido e pelo qual ansiavam para retornar à sua vida de camponeses.

Bloquear a estrada foi uma forma que escolheram para exprimir as suas reivindicações e queixas contra a direcção do movimento rebelde que tinha feito a promessa, mas não a tinha honrado quase dois anos depois do Acordo Geral de Paz.

E tinham apanhado um ministro por mero acaso, pois nunca tinham antecipado que um ministro percorresse aquela estrada e passasse pelo seu bloqueio.

No seio do Governo, eu era o ministro que mais viajava por estrada, pois, na minha opinião, para bem governar, é preciso estar no terreno a cobrir o território. E mesmo em lazer, o meu modo preferido de viagem é por estrada, fazendo turismo, parando de vez em quando e interagindo com as pessoas ao longo do caminho.

Uma vez consciente de que estava retido e impossibilitado de prosseguir, sem nada para fazer, dirigi-me a um estaleiro rudimentar do empreiteiro que estava a reparar estradas [eu era o ministro responsável pela pasta das estradas]. Havia uma palhota à qual me conduziram.

No interior, uma cama tradicional era a única mobília. A cama estava presa ao chão e era toda construída em estacas de madeira, com as compridas colocadas longitudinalmente e outras mais curtas colocadas transversalmente.

Tudo era apoiado em 6 ou 8 hastes em forma de Y que acomodavam as estacas longas.

Exausto do trabalho intensivo em Chimoio, nessa semana, deitei-me na cama, tendo dormido uma ou duas horas.

Quando acordei, soube que tinham chegado mais veículos e que tinham sido parados. Como o acampamento do empreiteiro tinha rádio, consegui falar com o Governador da Província de Manica, Artur Canana, informando-o da situação. Note-se que ainda não existiam telemóveis em Moçambique.

O bloqueio da estrada era na província de Sofala e o Governo Provincial também foi contactado via rádio e informado. Para me resgatarem, aconselharam-me a caminhar ao longo da linha férrea durante cerca de três a quatro quilómetros e um helicóptero seria enviado para me recolher. Rejeitei esta sugestão porque, disse eu, não podia ser resgatado para um lugar seguro deixando os meus quadros para trás.

Entrando em acção, e através de um dos engenheiros da minha comitiva, que era o intermediário [João Godinho], foi considerada uma primeira sugestão de libertar mulheres e crianças, mas tal era inviável, porque afinal mulheres e crianças não estavam em veículos separados, mas viajavam em veículos que também transportavam homens.

A ideia era libertar pessoas sem qualquer valor negocial como reféns, considerando que um ministro do Governo Central era um refém estratégico e de elevado valor.

Efectivamente, os elementos que bloqueavam a estrada tinham acabado por saber, a partir de determinado momento, que um dos seus cativos era um membro do Governo Central.

Foi marcada uma reunião e os chefes do grupo vieram encontrar-se comigo na minha barraca.

Depois de ouvir directamente as suas queixas, sugeri que, como ministro, estava disposto a ficar refém deles de boa vontade, se é que se pode dizer isso, desde que libertassem todos os reféns retidos e que os únicos reféns fossem o ministro e a sua comitiva.

Compreenderam o valor do seu principal refém e estavam prontos a aceitar o acordo. Assim, todos os veículos foram autorizados a partir com os seus ocupantes e só ficou a comitiva do ministro.

O meu passo seguinte foi voltar a sublinhar-lhes que, como ministro, não podia ajudá-los enquanto estivesse retido. No entanto, se me libertassem, assegurei-lhes que poderia transmitir as suas queixas em primeira mão ao Primeiro-Ministro, Dr. Mário Machungo, advogando por eles, e não tinha dúvidas de que o Governo iria trabalhar para lhes prestar assistência, a eles e aos que estivessem em situação semelhante. Prometi-lhes que seria o seu porta-voz.

Eles compreenderam, confiaram em mim e, com este acordo de cavalheiros, fui autorizado a partir com a minha comitiva.

Eram cerca de 19:15 quando partimos e, enquanto seguíamos para Caia, pudemos ouvir o noticiário das 19:30 da Rádio Moçambique que ainda reportava que o Ministro da Construção e Águas ainda estava detido na estrada N282 em Inhamitanga. Quando chegámos a Caia, tentei encontrar um operador de rádio activo, em vão. Eu era um rádio amador.

A administração local estava fechada, pois era noite de sábado e o operador de rádio da polícia estava ausente, a atender uma emergência pessoal. Tentei estabelecer contacto, tendo acesso a um rádio de uma ONG, mas ninguém respondeu às minhas chamadas. Desisti, fui almoçar/jantar num restaurante com a minha comitiva, antes de atravessar o rio Zambeze.

Texto em Destaque

Depois do jantar, encontramo-nos com uma força militar de operações especiais enviada de Quelimane, que tinha acabado de chegar a Caia e que, agora, em vez de ter de lançar uma missão de resgate para libertar o ministro, estava encarregue de o proteger e escoltar.

Atravessámos o Zambeze pouco antes da meia-noite [poucas pessoas o terão feito a esta hora da noite].

Uma vez na margem Norte, os militares prenderam os seus cabos em duas árvores altas para estabelecerem contacto via rádio e informar que o ministro estava sob a sua protecção e que estavam a partir de volta para Quelimane.

Vista aérea parcial da Cidade de Quelimane

O meu motorista estava tão abalado com todos os acontecimentos que não era capaz de conduzir em segurança.

Disse-lhe para passar para o banco de trás e foi assim que “o ministro conduzia com o seu guarda-costas ao lado e, sentado no banco de trás no lugar protocolar, estava o seu motorista”.

Chegámos a Quelimane por volta das 3 da manhã e, antes de me deitar, tinha de fazer algumas entrevistas telefónicas, e telefonei à minha mãe para lhe assegurar que tudo estava resolvido e ela pediu-me que a fosse visitar quando regressasse a Maputo. No domingo de manhã, na pista do aeroporto de Quelimane, lá estava eu de fato e com a cabeça coberta por um chapéu Panamá, na linha de oficiais que recebiam o Presidente Joaquim Chissano, à saída do seu avião.

Uma semana depois, de volta a Maputo, encontrei-me com o Primeiro-Ministro, informando-o da minha odisseia, e ele prosseguiu certificando-se que o Governo tinha cumprido o seu papel, assegurando que os cidadãos Moçambicanos desmobilizados das fileiras militares da Renamo receberiam o pacote devido aos antigos combatentes.

Sobre o Autor

*O autor é Engenheiro Civil e Sanitário e foi professor na Universidade Eduardo Mondlane, no Departamento de Engenharia Civil da Faculdade de Engenharia.

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